terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Rosa Lobato Faria- partiu mas deixou-nos muito de si em cada texto. obrigado


> Autobiografia>>

Quando eu era pequena havia um> mistério chamado Infância. Nunca tínhamos ouvido falar de> coisas aberrantes como educação sexual, política e> pedofilia. Vivíamos num mundo mágico de princesas> imaginárias, príncipes encantados e animais que falavam. A> pior pessoa que conhecíamos era a Bruxa da Branca de Neve.> Fazíamos hospitais para as formigas onde as camas eram> folhinhas de oliveira e não comíamos à mesa com os> adultos. Isto poupava-nos a conversas enfadonhas e> incompreensíveis, a milhas do nosso mundo tão outro, e> deixava-nos livres para projectos essenciais, como ir ver> oscilar os agriões nos regatos e fazer colares e brincos de> cerejas. Baptizávamos as árvores, passeávamos de burro,> fabricávamos grinaldas de flores do campo. Fazíamos> quadras ao desafio, inventávamos palavras e entoávamos> melodias nunca aprendidas.> Na Infância> as escolas ainda não tinham fechado. Ensinavam-nos coisas> inúteis como as regras da sintaxe e da ortografia, coisas> traumáticas como sujeitos, predicados e complementos> directos, coisas imbecis como verbos e tabuadas. Tinham a> infeliz ideia de nos ensinar a pensar e a surpreendente> mania de acreditar que isso era bom.> Não batíamos na professora, levávamos-lhe> flores.> E depois ainda havia infância para> perceber o aroma do suco das maçãs trincadas com dentes> novos, um rasto de hortelã nos aventais, a angustia de> esperar o nascer do sol sem ter a certeza de que viria (não> fosse a ousadia dos pássaros só visíveis na luz indecisa> da aurora), a beleza das cantigas límpidas das camponesas,> o fulgor das papoilas. E havia a praia, o mar, as bolas de> Berlim. (As bolas de Berlim são uma espécie de> ex-libris da Infância e nunca mais na vida houve fosse o> que fosse que nos soubesse tão bem).> Aos quatro anos aprendi a ler; aos> seis fazia versos, aos nove ensinaram-me inglês e pude> alargar o âmbito das minhas leituras infantis. Aos treze> fui, interna, para o Colégio. Ali havia muitas raparigas> que cheiravam a pão, escreviam cartas às escondidas, e> sonhavam com os filmes que viam nas férias. Tínhamos a> certeza de que o Tyrone Power havia de vir buscar-nos, com> os seus olhos morenos, depois de nos ter visto fazer uma> entrada espampanante no salão de baile onde o Fred Astaire> já nos teria escolhido para seu par ideal.> Chamava-se a isto Adolescência, as> formas cresciam-nos como as necessidades do espírito,> música, leitura, poesia, para mim sobretudo literatura,> história> universal, história de arte, descobrimentos e o Camões a> contar aquilo tudo, e as professoras a dizerem, aplica-te,> menina, que vais ser escritora.> Eram aulas gloriosas, em que a> espuma do mar entrava pela janela, a música da poesia> medieval ressoava nas paredes cheias de sol, ay eu coitada,> como vivo em gran cuidado, e ay flores, se sabedes novas,> vai-las lavar alva, e o rio corria entre as carteiras e nele> molhávamos os pés e as almas.> Além de tudo isto, que sorte, ainda> havia tremas e acentos graves.> Mas também tínhamos a célebre aula de Economia> Doméstica de onde saíamos com a sensação de que a mulher> era uma merdinha frágil, sem vontade própria, sempre a> obedecer ao marido, fraca de espírito que não de corpo,> pois, tendo passado o dia inteiro a esfregar o chão com> palha de aço, a espalhar cera, a puxar-lhe o lustro, mal> ouvia a chave na porta havia de apresentar-se ao macho> milagrosamente fresca, vestida de Doris Day, a mesa posta, o> jantarinho rescendente, e nem uma unha partida, nem um> cabelo desalinhado, lá-lá-lá, chegaste, meu amor, que> felicidade! (A professora era uma solteirona, mais sonhadora> do que nós, que sabia todas as receitas do mundo para tirar> todas as nódoas do mundo e os melhores truques para arear> os tachos de cobre que ninguém tinha na vida> real).> Mas o que sabíamos nós da vida> real? Aos 17 anos entrei para a Faculdade sem fazer a> mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me, ainda> completamente em branco (e não me refiro só à cor do> vestido). Só seis anos, três filhos e centenas de livros> mais tarde é que resolvi arrumar os meus valores como quem> arruma um guarda-vestidos. Isto não, isto> não se usa, isto não gosto, isto sim, isto seguramente,> isto talvez. Os preconceitos foram os primeiros a desandar,> assim como todos os itens que à pergunta porquê só me> tinham respondido porque sim, ou, pior, porque sempre foi> assim. E eu, tumba, lixo, se sempre foi assim é altura de> deixar de ser e começar a abrir caminho às gerações> futuras (ainda não sabia que entre os meus 12 netos se> contariam nove mulheres). Ouvi ontem uma jovem a dizer, a> revolução que nós fizemos nos últimos anos. Não meu> amor: a revolução que NÓS fizemos nos últimos 50 anos.> Mas não interessa quem fez o quê. É preciso é que tenha> sido feito. E que seja feito. E eu fiz tudo, quando ainda> não era suposto. Quando descobri que ser livre era> acreditar em mim própria, nos meus poucos, mas bons,> valores pessoais.> Depois foram as circunstâncias da> vida. A alegria de mais um> filho, erros, acertos, disparates, generosidades,> ingenuidades, tudo muito bom para aprender alguma coisa.> Tudo muito bom. Aprender é a palavra chave e dou por mal> empregue o dia em que não aprendo nada. Ainda espero ter> tempo de aprender muita coisa, agora que decidi que a> Bíblia é uma metáfora da vida humana e posso glosar essa> descoberta até, praticamente, ao infinito.> Pois é. Eu achava, pobre de mim,> que era poetisa. Ainda não sabia que estava só a tirar> apontamentos para o que havia de fazer mais tarde. A ganhar> intimidade, cumplicidade com as palavras. Também escrevia> crónicas e contos e recados à mulher-a-dias. E de repente,> aos 63 anos, renasci. Cresceu-me uma alma de romancista e> vá de escrever dez romances em 12 anos, mais um livro de> contos (Os Linhos da Avó) e sete ou oito livros infantis.> (Esta não é a minha área, mas não sei porquê,> pedem-me livros infantis. Ainda não escrevi nenhum que me> procurasse como acontece com os romances para adultos, que> vêm de noite ou quando vou no comboio e se me insinuam nos> interstícios do cérebro, e me atiram para outra dimensão> e me fazem sorrir por dentro o tempo todo e me tornam mais> disponível, mais alegre, mais nova).> Isto da idade também tem a sua> graça. Por fora, realmente, nota-se muito. Mas eu pouco> olho para o espelho e esqueço-me dessa história da imagem.> Quando estou em processo criativo sinto-me bonita. É como> se tivesse luzinhas na cabeça. Há 45 anos, com aquela> soberba muito feminina, costumava dizer que o meu espelho> eram os olhos dos homens. Agora são os olhos dos meus> leitores, sem distinção de sexo, raça, idade ou> religião. É um progresso enorme.> Se> isto fosse uma autobiografia teria que dizer que, perto> dos 30, comecei a dizer poesia na televisão e pelos 40 e> tais pus-me a fazer umas maluqueiras em novelas, séries,> etc. Também escrevi algumas destas coisas e daqui senti-me> tentada a escrever para o palco, que é uma das coisas mais> consoladoras que existem (outra pessoa diria gratificantes,> mas eu, não sei porquê, embirro com essa palavra). Não> há nada mais bonito do que ver as nossas palavras ganharem> vida, e sangue, e alma, pela voz e pelo corpo e pela> inteligência dos actores. Adoro actores. Mas não me atrevo> a fazer teatro porque não aprendi.> Que mais? Ah, as cantigas. Já> escrevi mais de mil e 500 e é uma das coisas mais> divertidas que me aconteceu. Ouvir a música e perceber o> que é que lá vem escrito, porque a melodia, como o vento,> tem uma alma e é preciso descobrir o que ela esconde.> Depois é> uma lotaria. Ou me cantam maravilhosamente bem ou> tristemente mal. Mas há que arriscar e, no fundo, é só> uma cantiga. Irrelevante.> Se isto fosse uma autobiografia> teria muitas outras coisas para contar. Mas não conto.> Primeiro, porque não quero. Segundo, porque só me dão> este espaço que, para 75 anos de vida, convenhamos, não é> excessivo.> Encontramo-nos no meu próximo romance.

Sem comentários:

Enviar um comentário